— Au! — reclamou o tatu de dores nas costas.
Pensando que uma caminhada fosse resolver, ele se levantou e paralisou depois de três passos.
— Querido — gritou a sua esposa, como se competisse com o som da corrente de água encanada que vinha de um dos cômodos em que ela se encontrava no segundo andar —, ponha o lixo fora!
— Deixa só as minhas costas decidirem parar de me torturar! — ele respondeu. Só a expiração decorrente da fala foi o suficiente para lhe causar mais dores.
— Se a minha artrite tivesse me impedido de fazer alguma coisa, você já teria morrido e eu também.
— Eu não consigo me mexer!
— Eu também não consigo. Só posso me mexer para conseguir o nosso jantar.
O jantar tinha chegado já fazia um tempo. Os bolinhos de cupins seriam o suficiente para aquela noite.
— Ora, faça isso pelo seu amor! — clamou o tatu.
— O quê? — perguntou ela. Alguma objeto de ferro havia caído no chão e ecoou fortemente pelos comôdos abaixo do segundo andar.
— O lixo!
A corrente de água encanada pareceu ter sido interrompida, e lá vinha sua esposa descendo as escadas.
— Eu já me preocupo o suficiente com o estado de nossa casa e com a satisfação dos nossos estomâgos — ela disparou sem gaguejar —, mas eu estou cansada de ouvir suas desculpas para não se preocupar com nada e nem comigo!
— Olha eu! — disse o tatu, contorcendo os músculos do focinho em resposta a dor que havia brotado por toda a sua carapaça.
— Por que você não olha para mim?
— Eu não consigo me virarrrrARRRRRHHGG...
— Você admite que não se importa comigo!
— PELO AMOR DE DEUS!
— Eu vou arrebentar essa pá nas suas costas!
— EI, ALTO LÁ!
E mais um mantra de dor se espalhou pelas suas costas.
— Eu vou contar até três — ela ameaçou.
— ALEIJA EU AÍ, NEURÓTICA!
Nisso, a profecia se realizou sem mais.
— ARRRRHHHHH, PORRA! — gritou o tatu.
Sua esposa repetidamente gritava "olha só" como se suas hipotéses tivessem se mostrado verdade naquele momento.
— VOCÊ É UM VAGABUNDO — disse ela, ferozmente.
— AH!
— COMO PODE SE LEVANTAR COM AS DORES, HEIN?
— EU ME SINTO MELHOR, PORRA.
E o tatu saiu.
— ONDE VAI VOCÊ? — perguntou ela.
— PÔR O LIXO FORA. NÃO ERA ISSO QUE VOCÊ QUERIA?