Dividiam um apartamento miúdo. Sem muitos perrengues. Sem muito luxo. Sem muitos altos. Sem muitos baixos. Sem muito, mas podendo o tanto quanto quisessem. A isso o corvo era grato pela morsa. A isso o gato era grato pelo corvo.
— Desligue a TV — pedia o corvo.
— Ela espanta o silêncio — dizia o gato.
Assim eram os jantares. Prato na mesa, olho na tela. Assim deixavam o relógio cruzar pelas marcas com seus ponteiros. Assim deixavam se enfeitiçar pelos programas. Delírios, desastres, sonhos e amores — tudo mentira. Até a canalhice era falsa.
— Eles choram tão bem — dizia o corvo inclinando a cabeça.
— É o trabalho deles — dizia o gato de boca cheia.
O gato até que mantinha um acervo de livros em uma das paredes do cubículo. Eram muitas palavras, apesar do espaço. Ele próprio nem as usava, e seu companheiro só revisava as mesmas de uma trágica carta. Enfim, nunca havia muito para se dizer, por isso não seria diferente agora, mas como todos sabem...
O tempo vive aprontando.
Certa madrugada, o gato acordou procurando a ternura das penas e não encontrou. Ele cambaleou grogue de sono quarto afora e encontrou seu parceiro no sofá. Naturalmente, a tevê estava ligada. O pássaro assistia a um programa nada convencional — era apenas um olho ampliado, piscando de tempos em tempos. A luz azul irradiada pela tevê até fazia reluzir sua plumagem.
— Que canal é esse? — perguntou o gato.
O corvo demorou para responder.
— Acho que é o nosso.
Nenhum dos dois conseguia distinguir a espécie do olhar. A pupila estreita chegava a lembrar a de um felino ou talvez a de um jacaré. O restante, entretanto, sequer remetia ao que era vivo. O relógio então cruzou seus ponteiros por umas quatro ou seis marcas. Ficaram ali juntos, olhando aquele olho bem olhado, que piscava, respirava, e até parecia encara-los de volta.
Em um acesso do desejo, o corvo sussurou:
— Se o inferno são os outros, eu já escolhi o meu.
O gato também sentiu uma faísca.
— Eu também já escolhi o meu — ele disse baixinho — e eu o escolhi pela pupila.
A tevê desligou por conta própria, como quem se retira da privacidade alheia. Eles então começaram a dançar pela primeira vez em muito tempo — com a língua. A tela morta chegou a refletir a dança por um tempo, mas a medida que afundavam apaixonadamente no sofá, o reflexo também teve que se despedir.